quarta-feira, maio 24, 2006

Parte fora - parte 2

Olhou pela janela e viu um pássaro. Ele voava devagar, mas batia as asas constantemente. Como ele agüentava bater as asas tantas vezes, repetidamente e sem cansar? Ainda mais debaixo da chuva! Era um trabalho árduo, sem dúvidas. Ela nunca poderia ser esse pássaro.

Como de nome, Esther apenas ficava parada, porém visível. Brilhando para ser notada e sem sair do lugar, como estrela mesmo. Como se bastasse apenas ser o que é.

Foi assim que seu antigo amante escapou de suas mãos. O amava muito, mas nunca fez por onde para tornar a relação mais agradável, controlar seus ciúmes ou deixá-lo mais a vontade ao lado dela. Mais feliz não é aquele que mais coisas tem, mas sim aquele que mais sabe utilizar o que tem para ser feliz.

O número dele ainda estava na discagem rápida. Era um tipo de demonstração de esperança de que algum dia voltassem a ficar juntos, embora não revelasse isso nem a si própria. Apertou, mas, antes que a chamada completasse, a encerrou apertando no botão vermelho. Não tinha nenhuma desculpa e achava que ele não se importaria se ela apenas revelasse sentir saudades. Ou no mínimo seria se submeter demais.

Naquele momento teve certeza de que ele era a parte fora que fazia falta. Era mais gostoso quando ele era parte que preenchia. "Eu amo", e a chuva batizaria o que poderia vir.

sexta-feira, maio 19, 2006

Parte fora - parte 1

Esther sentiu um cheiro bom, familiar. Será que era ele? Ficou com vergonha de olhar para trás. Se fosse mesmo ele, não saberia como agir. Depois de tanto tempo afastados, ela ainda sentia fagulhas pelo corpo.

Aquele cheiro a deixou inquieta. Lembrou-se de quando ainda eram amantes. Lembrou-se de um entardecer quando ficaram abraçados por horas após fazerem amor e ela observou sua respiração acalmando. Como gostava de brincar com os fios de sua barba por fazer! Como gostava de beijar atrás de sua orelha! Como gostava de sentir-se dele! Seu homem. Abriu um leve sorriso nostálgico. O cheiro a tentava.

O ônibus passou em frente a um prédio envidraçado. Olhou com medo e esperança para o reflexo. Não, não era ele...

Pegou o celular para ligar. Usaria como desculpa o fato de alguém usar o mesmo perfume que ele. Não! Era muito bobo. Ficaria óbvio que na verdade só estava sentindo saudade dos bons momentos. Queria tanto poder ouvir a sua voz...

quarta-feira, maio 17, 2006

As letras não traem

Saber escrever e saber falar é uma arte. Eu sei escrever, mas não sou muito articulada. Enrolo as palavras, gaguejo, falo rápido demais, esqueço os desfechos, uso o tom errado. Um horror!

A língua falada nos exige tantas expressões, tons e penduricalhos que eu me atrapalho toda e faço o samba do crioulo doido! Já a língua escrita não. Ela é polida, direta, visual. Pode ser lida com calma, pensada, relida. Ao escrever um texto, passar a idéia desejada, sem desespero, é muito mais fácil. As letras não traem.

Este ano eu assisti uma palestra ótima do Berto Filho. Ele escreveu umas vinte páginas e, com aquele vozeirão de Cid Moreira, começou a lê-las. Foi perfeito. Ele não perdeu nenhum detalhe do que tinha para falar. Inclusive citou que amarrar as palavras no papel é mais fácil do que amarrar na fala. E isso não tornou a palestra menos tocante, muito pelo contrário! Ele chorou duas vezes, emocionado ao falar da família tão querida.

Escrever é calculado, é limpo. O tom é igual para todos: as pontuações. Não há sotaque, articulação nem voz bonita. Mas cuidado! As pontuações sim podem ser traidoras.

Para uma adolescente em crise como eu, a diferença oral e escrita é um grande problema. Infantil na fala; madura nas letras, porém traída pelas pontuações.

Para lembrar

Eu sou feita de expectativas e frustrações. Não consigo apenas deixar fluir a vida. Será que eu penso demais?

"Você não consegue exercitar o que tanto vislumbra" - ouvi dia desses -
"Precisa é se desapegar, talvez, das suas visões idealitárias do mundo, da sua vida". É mais do que verdade.

Eu preciso - e como é difícil - enxergar nas pequenas coisas, e não ficar esperando por um momento especial. Talvez o momento especial nunca venha mesmo. E se vier, talvez eu nem saiba lidar com ele ainda.

Aos poucos vou mudando o modo como enxergo. Vou me desapegando, visando novos objetivos, aceitando e me encaixando. Quem sabe um dia eu tenha, de forma real, o que sempre achei que tinha, de forma irreal. Não, não sou coitada! Sou humana. Isso acontece. Até ontem não era assim.

Este é apenas um texto para eu lembrar.


"Uma mulher ama e não sabe ser amada. Ama e não sabe mais amar.
Esta mulher sonha com um príncipe que está na frente do seu umbigo... para onde não vai olhar."

segunda-feira, maio 15, 2006

Teste de gravidez

Deu positivo! Agora não tinha mais como voltar atrás. O feto já estava se formando dentro de seu útero. Aborto? Não, não poderia pagar o seu erro com uma vida. Não usou camisinha mesmo, agora assumiria.

Gelou! Pensou rápido em como tudo iria mudar radicalmente. Tinha sido só uma trepada sem compromisso. Mal conhecia o futuro pai. Será que ele seria um bom pai? Agora teriam que zelar integralmente pelo bem de uma outra pessoa. Uma pessoa que dependeria por inteiro deles. Ela tinha só dezesseis anos, repetente, cursava a oitava série de uma escola paga pelos pais.

Droga, e os pais?! Como contaria essa notícia para eles? De certo o pai a expulsaria de casa; Mandaria arrumar uma forma de sustentar o filho; Obrigaria um casamento; A tiraria da escola para não passar vergonha! A mãe ajudaria a criar, mas não sem deixar de dar aquele sermão. A família toda a criticaria! Os conhecidos olhariam de cara feia, "Que dada!". Alguns - só alguns, porque a revelação acontece nos momentos de difíceis - amigos dariam apoio. E o pai? Assumiria?

Foi só uma trepada! Umazinha! Que falta de sorte! Sentia ódio da sua estupidez. Quanta coisa poderia ser evitada... Por outro lado, já até conseguia sentir amor materno. Olhava para a sua barriga, ainda pequena, e passava a mão com carinho. Tinha uma pessoa ali dentro! Deu um suspiro.

Era semana de dia das mães. Que coincidência ingrata, mas feliz. Nove meses depois teria um bebê em seus braços. Um problema. Um milagre. Uma alegria.

segunda-feira, maio 01, 2006

Tempo psicológico

O tempo pode ser contado cronologicamente quando é preciso pagar contas, anotar datas de eventos, saber há quantos dias se está vivo, comparecer a um compromisso. Para sentimentos o tempo não pode, de forma alguma, ser contado cronologicamente.

O sentimento é uma coisa tão única, pessoal e variante que é impossível impor limites e regras. Há tantos idosos que se sentem jovens, enquanto há jovens que já são bem maduros; tantas pessoas se conhecem a pouco tempo e se amam, enquanto outras só depois de anos percebem; tantas pessoas que em um mês de namoro se casam e vivem felizes para sempre, enquanto outras que depois de anos, terminam e nunca mais voltam; amigos de pequena data com os quais conseguimos nos abrir, enquanto não conseguimos nos abrir com algum que conhecemos a muito mais tempo...

Não se pode julgar sentimentos pelo cronológico, apenas pelo psicológico.

Máscara

Era um homem engraçado, boa praça, carinhoso, trabalhador, bom esposo e bom pai. Na frente dos amigos sempre atuava: não agia naturalmente; vestia uma máscara; passava a imagem de uma pessoa que não era.

O tom de voz mudava, se movia diferente, fazia expressões que não costumava fazer, usava palavras que não costumava usar, contava de outra maneira o que realmente tinha acontecido, fumava, tratava filha e esposa com certa impessoalidade. Ele não era o que era na frente de outros ou na frente da família?

Quando se brinca de ser outra pessoa é porque essa outra é o que você queria ser e não é. Ou porque essa outra sabe agir e ser aceita melhor na sociedade do que você. No final das contas, ninguém o conhecia de verdade. Talvez nem ele mesmo se visse no próprio reflexo.

Medo? Proteção? Projeção? Quem não se conhece não consegue conhecer o outro.